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13/09/2019 12h40
O terraplanismo jurídico, a Uber e o STJ: o caráter anticientífico da decisão sobre a competência da Justiça do Trabalho

STJ não tem competência para declarar existência ou inexistência de vínculo empregatício


A bem conhecida empresa Uber, em menos de dez anos, conseguiu se alastrar pelo mundo, alterando a forma como parte das pessoas se locomovem nas cidades. Entretanto, o seu percurso não foi isento de polêmicas, atos de sabotagem a concorrentes, cultura empresarial machista, desafio às leis e autoridades, acusações de corrupção e atitudes que colocam em dúvida sua ética. São listados pela imprensa 49 grandes escândalos.

Também é objeto de veemente discussão o impacto negativo que sua atividade impõe ao trânsito das cidades, a dúvida sobre sua viabilidade financeira face aos gigantescos prejuízos que sofre a cada trimestre e a sua pegada antiecológica pela solução de transporte individual em detrimento do coletivo e de massa.

Porém, o ponto principal de questionamento, em todo o mundo, e que gera posições emocionadas, é acerca da existência da relação de emprego entre a empresa e seus motoristas, objeto de farta discussão acadêmica, jurisprudencial e legislativa, além de, é claro, ser motivo de manifestações e reivindicações de trabalhadores ao redor do mundo contra o modelo de contratação de pessoas idealizado por essa empresa.

De fato, em maio de 2019, ou seja, há poucos meses, tivemos a primeira greve mundial dos motoristas de Uber. Neste exato momento, ou seja, em setembro de 2019, temos uma intensa movimentação dos motoristas de aplicativo para a previsão por lei na Califórnia da sua condição de empregado, o que já foi reconhecido pela Suprema Corte daquele Estado norte-americano no famoso caso Dynamex.

O projeto de lei já foi aprovado na Câmara e passou pelas comissões no Senado estadual, indo proximamente para o plenário, tendo total apoio do Governador do estado dourado. Todas as instâncias da Justiça do Trabalho na Inglaterra já reconheceram a condição de “worker” aos motoristas da empresa, garantindo-lhes uma série de direitos.

A cidade de Nova Iorque determinou por lei o pagamento de salário mínimo para os trabalhadores da Uber. A própria empresa veio a público para dizer, em relação ao projeto de lei na Califórnia, que não queria a manutenção do status quo, e propôs uma série de salvaguardas aos trabalhadores em troca da lei, inclusive o pagamento de salário mínimo, proposta que possivelmente será rejeitada.

Mas eis que surge, no meio de toda essa discussão profunda e com consequências importantes, decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ que, em análise superficial do caso, com lesão à boa técnica processual e infringindo a regra constitucional de competência, julga que as questões relativas à relação entre Uber e seus motoristas devem ser processadas pela Justiça Comum Estadual, e, de quebra, arremata como base argumentativa a inexistência geral e abstrata da relação de emprego entre os motoristas e a empresa.

Estamos em uma época em que a ciência vem sendo questionada, vide o crescimento de adeptos na absurda tese de que nosso planeta é plano.

Pois bem, a decisão da 2ª Seção do STJ pode ser considerada um exemplo de terraplanismo jurídico, fugindo de toda a ciência jurídica e dos fatos na argumentação de sua decisão.

De início, a decisão acerta em dizer que a competência é determinada pelo pedido e pela causa de pedir. Ou seja, a verificação da competência se dá em abstrato, não adentrando ao mérito e passando ao largo de eventuais provas já existentes no processo, mas sim analisada conforme a pretensão como consta na petição inicial.

Entretanto, comete um deslize logo a seguir ao dizer que a competência em razão da matéria decorre da natureza da pretensão. Ora, essa afirmação não é válida para a Justiça do Trabalho, pois a Constituição vinculou a sua parcela de jurisdição à condição que os pedidos tenham origem em uma relação de trabalho em sentido amplo. De fato, a Emenda Constitucional n. 45 veio ampliar o âmbito de competência da Justiça do Trabalho, que anteriormente girava em torno da relação de emprego. A partir das alterações no texto constitucional, a Justiça do Trabalho passou a julgar todas as questões decorrentes das demais relações de trabalho e não somente a de emprego, conforme a letra expressa do art. 114, inciso I.

Ocorre que esse erro fica pequeno perto da sequência da decisão, que passa, de forma inacreditável, a analisar a existência (ou não) do vínculo de emprego para decidir sobre a competência para julgamento do caso, mesmo tendo afirmado expressamente no início da sua decisão que o pedido e a causa de pedir da petição inicial não se relacionavam com a condição de empregado. Qual a razão de se ter adentrado nesse ponto se não constava da petição inicial? Parece evidente que o pronunciamento sobre esse ponto foi fora de contexto e gratuito.

Mas não é só. Um estudante de segundo período na Faculdade Nacional de Direito sabe que para se julgar o mérito de um caso, como por exemplo afirmar a existência ou não de um vínculo de emprego, há a necessidade de primeiro se formar o contraditório com a entrega da defesa, e após deve ser realizada a instrução do processo, com a apresentação das provas pelas partes e, por último, passa-se à análise pelo juízo competente, no caso o de primeiro grau, dos pedidos e das teses do autor e réu com base no conjunto probatório dos autos. Ou seja, já se percebe que o STJ errou de forma comezinha ao se pronunciar sobre questão de mérito trabalhista.

Fica a dúvida: estaria o STJ julgando a inexistência do vínculo empregatício no caso em concreto ou de forma geral e abstrata em relação a todos os motoristas da empresa? Qualquer das duas soluções afronta o Direito.

Todo professor de Direito Processual ficará horrorizado ao ver que o STJ adentrou à questão dos elementos da relação de emprego para tomar decisão sobre competência: “A relação de emprego exige os pressupostos da pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Inexistente algum desses pressupostos, o trabalho caracteriza-se como autônomo ou eventual.”

Aqui a turma comete um equívoco comum de leigo em Direito do Trabalho, de alguém que não é da área trabalhista e não tem intimidade com a matéria, pois a inexistência de algum dos requisitos da relação de emprego tem como consequência a não caracterização do vínculo empregatício. Não se pode afirmar qual o tipo de relação de trabalho resta verificado, pois isso vai depender de outras características que devem ser verificadas: além de autônomo ou eventual, pode ser também um trabalhador voluntário, pode ser estagiário ou pode ser avulso, entre outras possibilidades.

Mas ultrapassado esse erro, a decisão ainda consegue piorar ao tentar descer para o mundo dos fatos: “A empresa UBER atua no mercado através (sic) de um aplicativo de celular responsável por fazer a aproximação entre os motoristas parceiros e seus clientes, os passageiros.” O aplicativo é somente a interface visível presente nos aparelhos telefônicos dos clientes e trabalhadores.

A empresa faz bem mais que ser detentora do aplicativo: ela tem em verdade toda uma infraestrutura de telecomunicações e alto poder de processamento com servidores potentes de armazenamento de dados que fazem ser possível sua atividade econômica – o serviço de transporte -, além de garantir meios materiais de execução, como pontos de apoio em aeroportos. A empresa monitora cada etapa da execução do serviço, em controle tanto da corrida, do motorista e do passageiro. A empresa impõe modelo de prestação de serviços de transporte, punindo os motoristas que não cumprirem as suas regras e seus padrões mínimos de qualidade. A Uber, inclusive, impõe o preço do serviço. O trabalhador não sabe nem mesmo o endereço para onde deverá levar o passageiro antes de aceitar realizar a corrida, nem fica com os contatos do cliente.

Conforme já decidiu a Corte de Justiça da União Europeia, a empresa não é mera intermediadora entre cliente e prestador de serviço, ela é uma empresa de transporte, por organizar o funcionamento total do serviço. No mundo real é esse o negócio da empresa. Não se trata de economia compartilhada, ninguém fora do Brasil ainda mantém esse discurso, nem as próprias plataformas de intermediação de trabalhadores ousam declarar-se dessa forma.

De fato, economia do compartilhamento se dá em plataformas como o Blablacar, por exemplo, pelo qual pessoas dão caronas umas para as outras, não fazendo disso suas profissões. Trata-se sim da chamada Gig Economy, ou economia do bico, baseada em tarefas fragmentadas realizadas por trabalhadores precários para a realização da atividade econômica da empresa, geralmente com a utilização de meios telemáticos para a arregimentação e controle desses trabalhadores.

O magistrado britânico na decisão acima citada afirmou que é “irreal negar que a Uber não tenha como negócio o fornecimento de serviços de transporte.” E continua mais à frente: “a noção que Uber em Londres é um mosaico de 30.000 pequenos negócios ligados por uma plataforma comum é para nosso senso ligeiramente ridículo.”
Porém, como se não bastasse, o STJ passa a analisar a existência dos elementos da relação de emprego (!): “Os motoristas de aplicativo não mantêm relação hierárquica com a empresa UBER porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e não recebem salário fixo, o que descaracterizaria o vínculo empregatício entre as partes.”

Então a Corte arremata: “Afastada a relação de emprego”. Novamente a decisão comete erros básicos de direito do trabalho. O mais grave deles é dizer que não tem vínculo de emprego quem não tem salário fixo, o que não tem qualquer mínima sustentação em lei, doutrina ou jurisprudência trabalhista em qualquer lugar do mundo. Isso pode ser escusado porque foi proferido por quem não tem convívio com a matéria e não é habilitado constitucionalmente para fazer esse tipo de julgamento. Porém não é escusável o que levou a turma a esse erro: o STJ não poderia jamais ter entrado nessa questão, por absoluta incompetência!

Fora as questões técnicas trabalhistas, há aqui vários erros: 1) como dissemos, somente a Justiça do Trabalho tem competência para decidir sobre a existência ou inexistência da relação de emprego; 2) a declaração da existência do vínculo teria que passar por todo o devido processo legal, ou seja, ser submetido ao contraditório e com produção de provas, julgado pelo primeiro grau e manejados todos os recursos previstos em lei, não podendo jamais ser realizado tal julgamento em sede de conflito de competência; 3) a decisão aborda questões de prova em relação à existência de vinculo, fazendo afirmações que somente poderiam ser realizadas após o fim da instrução processual, como por exemplo a forma de prestação de trabalho.

Entretanto, os equívocos não param por aí. Mesmo que a causa de pedir não fosse baseada em relação de emprego, como era o caso desde o início, ainda restaria a análise da existência, no caso, em tese, de uma relação de trabalho lato sensu no pedido e na causa de pedir.

Como vimos acima, a própria empresa Uber não nega a condição de trabalhadores de seus chamados “parceiros”. Ela assim se expressa ao tratá-los de trabalhadores autônomos e prometê-los pagamento de salário mínimo e também desde o ano passado limita a jornada em 12 horas e impõe descanso diário de 6 horas aos trabalhadores nos Estados Unidos. O próprio acórdão em comento, mesmo que de forma equivocada, afirma que uma vez inexistente a relação de emprego estaríamos frente a trabalho autônomo e eventual. Assim, nos próprios termos da decisão, o caso seria de um trabalhador autônomo ou eventual realizando um pedido oriundo dessa relação de trabalho, o que atrairia a competência da Justiça do Trabalho.

No caso que deu origem ao conflito de competência, o motorista pede a reativação da sua conta para que volte a trabalhar, além de danos morais decorrentes da ilegítima dispensa. Ou seja, sem querer adentrar na questão da relação de emprego (o que inclusive pode ser feito por ele no futuro em uma ação na Justiça do Trabalho), o trabalhador pretende ver garantido o seu direito de manter sua relação de trabalho com a empresa Uber e obter a indenização correspondente aos danos que entende terem existido. Como vimos, a competência da Justiça do Trabalho não decorre da natureza dos pedidos realizados: se eu peço danos morais decorrentes de um assédio realizado pelo meu empregador, a Justiça do Trabalho é a competente.

Então pouco importa, ao contrário do que diz o acórdão, que os pedidos realizados sejam “de cunho eminentemente civil”. No caso julgado, ao revés, o motorista pede a prestação jurisdicional para que possa voltar a trabalhar. Ou seja, o pedido é realizado tendo como causa de pedir o direito ao trabalho. Existe direito mais de natureza trabalhista que esse?

Sabemos que a declaração de inexistência de vínculo empregatício contida nessa decisão não vincula nem o trabalhador cujo processo estava sendo julgado no conflito de competência, podendo inclusive, como dissemos, ajuizar uma ação na Justiça do Trabalho para reconhecimento do vínculo empregatício. No entanto, a mensagem que se passa para a população é que uma corte superior decidiu peremptoriamente sobre essa questão. Como afirma Lawrence Friedman, em sua excelente obra “Impact – How Law Affects Behavior”, a mensagem da lei ou da decisão é mais importante até que o seu conteúdo.

Assim, equivocadamente a mensagem é esparramada por diversos veículos de comunicação, o que é de toda forma lamentável pelas suas consequências nefastas. Perceba-se que as manchetes são no sentido da inexistência do vínculo empregatício, e não do que estava sendo realmente julgado, que era a competência para a causa.

Negar a natureza de relação de trabalho àqueles que só têm o trabalho para vender para sua sobrevivência: isso é terraplanismo, pois não corresponde à realidade.

Negar a ciência e os fatos tem consequências graves no mundo real. Acreditar que vacinas fazem mal coloca em risco a saúde da população devido ao ressurgimento de doenças erradicadas. O negócio da Uber não seria possível se o GPS – Global Positioning System fosse baseado na estapafúrdia ideia de que a terra é plana, pois não conseguiria mandar um carro até a esquina. Negar a condição de trabalhadores aos motoristas da Uber é tentar esconder a realidade, que logo emergirá com força em convulsões sociais de todo tipo, pois, conforme a clássica máxima de Georges Ripert, os fatos sempre se vingam do direito quando são ignorados.

Artigo do professor de Direito de Trabalho (UFRJ) e procurador do Ministério Público do Trabalho Rodrigo Carelli, publicado originalmente no Jota: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-terraplanismo-juridico-a-uber-e-o-stj-06092019